A ação toma por base uma entrevista de Ligia Bahia ao canal do Instituto Conhecimento Liberta (ICL) no Youtube, em 15 de agosto passado, na qual ela faz críticas ao comando da entidade. Além dos R$ 100 mil e da retratação por supostas agressões feitas por Ligia na entrevista, o CFM exige que ela se “abstenha de fazer qualquer tipo de publicação nas redes sociais” em relação à autarquia.
TUTELA NEGADA
A ação foi impetrada em 26 de agosto na 19ª Vara Federal Civil de São Paulo. Ao lado da professora, figuram como réus o ICL e o Google (proprietário do Youtube). As duas empresas foram citadas para que retirassem do ar o link da entrevista, o que foi feito antes mesmo da conclusão do processo. Os autores pediram tutela de urgência, ou seja, que a Justiça concedesse imediatamente os efeitos contra Ligia Bahia solicitados na ação. Mas esse pedido foi negado.
Em sua análise inicial, expedida no último dia 15 de outubro, o juiz José Carlos Motta, da 19ª Vara Federal Cível de SP, indeferiu o pedido sob a argumentação de que “as manifestações da ré Ligia Bahia em sua entrevista devem ser compreendidas como abarcadas pela liberdade de expressão e de crítica política, ainda que contundentes”.
Em outro trecho de sua decisão, o magistrado sustenta que a argumentação usada por Ligia Bahia na entrevista “também foi alvo de críticas à atuação do CFM em outros veículos de imprensa, seja no que tange à sua tolerância na utilização de tratamentos sem eficácia comprovada durante a pandemia de covid-19, seja no que concerne à recente Resolução CFM nº 2.378/2024, que proibiu aos médicos a interrupção de gravidez nos casos de aborto previstos em lei”.
A professora Ligia Bahia acredita que a Justiça vai prevalecer. “Não proferi ofensas à honra, nem agressões. Fiz críticas, o que me é garantido pelo direito constitucional de liberdade de expressão. Tenho confiança na Justiça”, disse a professora.
Em nota divulgada esta semana, o escritório Vilhena Silva Advogados, que representa Ligia Bahia, destaca que “a liberdade de expressão é um direito fundamental garantido pela Constituição Federal” e que “a possibilidade de manifestar opiniões e experiências pessoais contribui para a construção de senso crítico e de uma sociedade democrática e plural”.
Os advogados sustentam que a ação “tem como objetivo responsabilizar a doutora Ligia Bahia, reconhecida nacionalmente pelas suas contribuições à pesquisa e à academia, por um suposto dano que suas manifestações teriam causado à credibilidade do CFM” e que “a crítica e o debate são pilares de uma sociedade saudável, e que qualquer tentativa de silenciar vozes não deve ser permitida”.
SOLIDARIEDADE
A AdUFRJ vem prestando apoio à docente. O professor Rodrigo Fonseca, diretor do sindicato, enxerga no processo movido pelo CFM uma tentativa de silenciar vozes contrárias à postura do comando da autarquia. “A professora Ligia é uma referência nacional na área, uma batalhadora pelo Sistema Único de Saúde e pelas causas coletivas. A AdUFRJ, toda a sua diretoria e nosso setor Jurídico vêm acompanhando o caso diariamente e dando todo suporte para que a professora Ligia não tenha sua liberdade de expressão cerceada, princípio fundamental de um estado democrático de Direito”, afirma Rodrigo.
Para o professor Renato Janine Ribeiro, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), as críticas feitas pela conselheira da entidade são pertinentes. “A SBPC manifesta sua perplexidade e indignação ante ao processo iniciado por membros do CFM, usando o nome dessa autarquia federal, contra a professora Ligia Bahia. Porque ela exerceu o direito constitucional de crítica a medidas que foram tomadas pelos membros do Conselho, nos anos mais recentes, e que, segundo a argumentação dela, contrariam as evidências científicas”, diz o professor.
“Não podemos esquecer também que o CFM foi muito leniente com tratamentos sem base científica oferecidos por ocasião da pandemia da covid-19, o que realmente não corresponde ao que esperamos de uma prática de saúde que somente tem qualidade se for baseada em descobertas científicas testadas e comprovadas. Manifestamos nossa solidariedade à professora Ligia Bahia”, completa o presidente da SBPC.
PERFIL CONSERVADOR
A entrevista ao ICL foi concedida por Ligia Bahia uma semana depois das eleições do CFM, nas quais mais de 60% dos conselheiros se reelegeram, e novos representantes, ainda mais alinhados à direita, também conseguiram vitórias. Foram eleitos 54 conselheiros, dois para cada estado e o Distrito Federal. A eleição mobilizou políticos bolsonaristas em todo o país. Nunca é demais lembrar que o CFM foi um dos principais aliados do governo Bolsonaro na postura negacionista durante a pandemia de covid-19.
Em São Paulo, saiu consagrado das urnas o candidato Francisco Cardoso Alves, da chapa Força Médica. Ele foi apoiado pelo deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) e foi estrela de lives bolsonaristas por defender tratamentos sem comprovação científica na pandemia.
No Distrito Federal, a médica Rosylane Rocha, uma das vices do atual presidente do CFM, José Hiran da Silva Gallo, foi reconduzida ao cargo. Ela se notabilizou por comemorar nas redes sociais a tentativa de golpe de Estado em 8 de janeiro de 2023.
Já no Rio de Janeiro foi reeleito o médico Raphael Câmara, com o slogan “Não deixar a esquerda tomar o CFM”. Ele foi o relator da Resolução nº 2.378/2024 do CFM, que proibiu a assistolia fetal a partir da 22ª semana de gravidez. O procedimento é recomendado pela Organização Mundial da Saúde em casos de aborto realizado em vítimas de estupro que estejam com mais de 22 semanas de gestação.
O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), derrubou a resolução do CFM por entender que ela era incompatível com a Constituição, em caso que deverá ser levado ao plenário até o fim do ano. A resolução do CFM foi basilar para o chamado PL do Estupro, que pretendia equiparar o aborto acima de 22 semanas ao homicídio. O projeto foi retirado de pauta na Câmara depois de pressão da sociedade civil, mas ainda tramita na Casa.
O Jornal da AdUFRJ encaminhou questionamentos ao CFM sobre o processo contra a professora Ligia Bahia, mas não obteve resposta até o fechamento desta edição.