Ele está no lugar certo, na hora certa. Pedro Lima (foto abaixo), 42 anos, professor de Ciência Política da UFRJ, está morando em Paris, onde faz o pós-doutorado na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais. Sua pesquisa investiga o crescimento da extrema direita. Nas últimas semanas, o pesquisador vive um momento raro na trajetória de todo cientista social. Seu objeto de estudo está no centro da História. De uma surpreendente história que começou no início de junho com a ascensão de grupos fascistas nas eleições europeias, passou pela dissolução do Parlamento pelo presidente Macron e surpreendeu o planeta com a vitória da esquerda sobre o grupo racista de Marine Le Pen no segundo turno das eleições parlamentares de 7 de julho. Um contagiante thriller político que ainda está longe do epílogo.
A pedido do Jornal da AdUFRJ, Pedro fotografou as ruas de Paris emolduradas pela política em cartazes e murais. Dividido entre a rotina familiar com a filha pequena e os últimos momentos de seu pós-doc, Pedro prestou um interessante depoimento sobre o que está testemunhando na terra da Bastilha.
A seguir, o relato de Pedro com uma breve introdução sobre as forças políticas na França. “Nos últimos meses, acompanhei o dia a dia da política francesa, desde as eleições parlamentares europeias de junho até as eleições para o Parlamento francês. É uma experiência riquíssima, mas já está acabando. Em agosto, volto para as salas de aula do IFCS”.
PRINCIPAIS ATORES
As eleições parlamentares daqui são realizadas em dois turnos.
É preciso explicar essa especificidade do sistema francês: aqui, há segundo turno de eleições parlamentares, que pode ser disputado por três candidatos. O sistema é parlamentarista e as eleições parlamentares ocorrem em cada um dos 577 distritos, cada um com seus respectivos candidatos.
SOBRE AS FORÇAS POLÍTICAS
Na direita liberal, está o presidente Macron. O primeiro-ministro é Gabriel Attal, do mesmo partido de Macron, o Renascimento.
Na Esquerda, está a Frente Popular, Front Populaire. Ela se formou depois das eleições de 9 de junho. Não é um partido. É uma frente de esquerda formada por quatro partidos. Ela reúne grupos que vão desde uma esquerda mais moderada até os mais radicais. São os socialistas, os comunistas, os verdes e a França Insubmissa – liderada por Jean-Luc Mélenchon, um dos principais atores no xadrez político que mobilizou o país nas últimas semanas.
A França Insubmissa é a corrente mais radical e também a mais influente da Frente Popular. O Partido Socialista já foi muito forte e tradicional na França e governou o país, com François Hollande de 2012 a 2017. Mas, depois de 2017, os socialistas estão enfraquecidos.
Na extrema direita, com cores fascistas, está o partido Rassemblement National, liderado por Marine Le Pen, e madrinha política de um dos nomes mais novos do grupo, Jean Bardella, de 28 anos.
PRIMEIRO MOMENTO
Começamos pelo 9 de junho, o primeiro momento dessa história. Foram eleições para o Parlamento europeu. Elas não motivaram as pessoas. Acho que foi assim em todos os países. Particularmente na França, não ocorreram grandes mobilizações. Vi pouca coisa na rua. Até fiz uma foto – ela está aqui na página – de um pôster com o Mélenchon. De resto, foi tudo muito discreto na cidade nesse primeiro momento.
O resultado dessas eleições foi amplamente favorável para a extrema direita de Marine Le Penn. E é a partir desse resultado que ocorre o que chocou todo mundo e que nenhum observador, nenhum cientista político, ninguém antecipava: a decisão de Macron, logo na noite de 9 de junho, de dissolver o Parlamento e convocar novas eleições em três semanas. Foi uma decisão drástica, com um intervalo de tempo mínimo. Em 9 de junho, dissolveu o Parlamento, convocou o primeiro turno da eleição para 30 de junho e o segundo turno para 7 de julho.
CONTER A EXTREMA DIREITA
A partir da decisão de Macron, na noite de 9 de junho, começa uma sensação geral, um imperativo de mobilização para conter a extrema direita. A extrema direita parecia mais forte do que nunca. Ninguém jamais supôs que a extrema direita estivesse tão forte como ela se mostrou nas eleições europeias do dia 9.
Para conter esse crescimento, a esquerda se uniu e formou a Frente Popular.
FRENTE POPULAR
Há uma tradição francesa, desde os anos 90, da formação de blocos chamados de frentes republicanas. São frentes contra o fascismo e contra a extrema direita.
Mas, no caso da Frente Popular de agora, há algo de novo. Não é uma frente republicana como as anteriores. É uma frente só da esquerda. Só de partidos de esquerda. Só de partidos desse campo e espectro político.
Ela é uma frente de esquerda formada para disputar as eleições e conquistar cadeiras no parlamento. É uma frente eleitoral, circunstancial, formada logo depois do 9 de junho, data da dissolução do parlamento.
AS INTENÇÕES DE MACRON
Com a decisão do Macron de dissolver o parlamento, começa um clima bem diferente na cidade e no país. Todos queriam entender e interpretar o gesto do Macron: O que ele estava querendo? Qual a estratégia política por trás?
O impacto imediato da decisão de Macron foi abafar a vitória da extrema direita no Parlamento Europeu. Ao dissolver o parlamento francês e convocar eleições, ele gera uma crise interna e isso reduz a visibilidade de vitória da extrema direita. Ele mudou o foco. Criou um fato político maior: o parlamento foi dissolvido e vai ter eleição daqui a 21 dias. Isso abafou a vitória da extrema direita, ao mesmo tempo em que colocou um desafio na mesa. É como se estivesse desafiando a extrema direita, falando: “agora vamos ver mesmo se vocês estão fortes mesmo? Vamos para a eleição que interessa de verdade, que são as eleições francesas”. Acho que isso foi um impacto imediato.
MACRON APOSTOU NA DIVISÂO
Acho que uma interpretação muito corrente e muito plausível é a de que Macron fez o que fez, pressupondo uma divisão da esquerda. A esquerda foi para a eleição parlamentar europeia totalmente dividida, rachada, brigada entre si. Macron apostou que essa divisão se repetiria no primeiro turno das eleições francesas e que as forças macronistas receberiam o apoio da esquerda no segundo turno.
O pressuposto dessa lógica era que a esquerda ficaria em terceiro lugar, os macronistas em segundo e a extrema direita em primeiro. Nada disso aconteceu.
MACRONISTAS ENFRAQUECIDOS
É preciso entender que naquele momento da dissolução do Parlamento, havia uma crise dentro do governo Macron. A força dos macronistas estava truncada. O primeiro-ministro, um macronista, já vinha com dificuldade de governar.
ESQUERDA UNIDA
Logo após a dissolução do Parlamento, a esquerda se reúne. Os líderes do Partido Comunista francês, dos Ecologistas, da França Insubmissa e do Partido Socialista se encontram e resolvem se unir para formar uma nova Frente Popular para disputar as eleições parlamentares com uma chapa só.
Essa decisão pega todo mundo de surpresa, inclusive Macron e o macronismo.
Todo mundo achava que seria muito difícil construir uma unidade em tão pouco tempo.
Aliás, esse é um elemento importante também da decisão do Macron: não só ele chama eleições, como chama eleições para o período mínimo de 21 dias.
Esse é mais um elemento para reforçar a avalição de que o propósito de Macron era inviabilizar uma unidade da esquerda. São 577 cadeiras do parlamento em disputa. São, portanto, 577 distritos diferentes, com candidatos diferentes. Seria muito difícil construir uma unidade. Mas a esquerda conseguiu o que parecia impossível: se unir e apresentar candidaturas únicas nos 577 distritos.
Fazendo assim, mudou o cenário e o macronismo foi pego, digamos, no contrapé.
MOBILIZAÇÃO GANHA AS RUAS
Se, de um lado, a cúpula da esquerda conseguiu articular a unidade, do outro era necessário mobilizar a rua, coisa que até as eleições europeias de 9 de junho não havia acontecido.
E aí realmente aconteceu algo impressionante. O assunto ganhou as ruas. As paredes viraram um mar de pôsteres, de adesivos, de cartazes dos candidatos da Frente Popular.
No bairro que eu moro, 19eme, que é uma área popular de Paris, cheia de imigrantes, a esquerda é muito forte, tem uma votação muito forte. E aí foi incrível. Os bares e os cafés entraram na campanha. Todos ficaram tomados pela campanha da Frente Popular.
Foi muito interessante ver essa campanha local e o enraizamento da esquerda nessa área. Ficou visível a cultura da esquerda. Em pouquíssimo tempo, a mobilização cresceu e ocorreram muitos atos de rua, com muita panfletagem, muito trabalho de base, e uma hegemonia do grupo França Insubmissa dentro da Frente Popular.
ENTRE 30 DE JUNHO E 7 DE JULHO
O primeiro turno ocorreu em 30 de junho, e esse é um momento-chave para entender essa cronologia.
No 30 de junho, a extrema direita teve muito voto e ficou em primeiro lugar. A Frente Popular ficou em segundo e os macronistas, em terceiro.
Portanto, a eleição no primeiro turno foi uma grande derrota do campo macronista e uma grande vitória do campo da extrema direita.
Assim que soube do resultado do primeiro turno, Mélenchon anunciou que a Frente Popular iria abrir mão de candidaturas sempre que houvesse um candidato macronista bem posicionado.
MACRON AMBÍGUO
Macron e o campo macronista deram declarações ambíguas. O campo macronista tem muita resistência à França Insubmissa.
As declarações da esquerda para a formação de uma frente republicana antifascista ou anti extrema-direita foram muito fortes. Porém, os macronistas não acompanharam essa tendência.
De todo modo, o que acontece é que, em boa parte dos distritos em que ocorreu segundo turno com três candidatos, acabou havendo, sim, a formação dessa frente republicana, a partir da desistência do candidato menos cotado para ganhar.
Com isso, ocorreu uma mudança drástica entre o primeiro e o segundo turno, em apenas uma semana.
RESULTADO SURPREENDENTE
A esquerda surpreendeu, venceu e ficou em primeiro lugar. O macronismo ficou em segundo. E a extrema direita em último – ela havia vencido no primeiro turno. Ninguém imaginava esse resultado.
E AGORA? O QUE ESTÁ
ACONTECENDO NA FRANÇA?
Vou falar um pouco sobre onde nós estamos agora. No segundo turno, ocorreu uma vitória da esquerda, mas a esquerda não tem maioria absoluta no Parlamento. A grosso modo, o parlamento está dividido assim: 1/3 para a esquerda, pouco menos de 1/3 para a direita liberal macronista e um pouco menos ainda para a extrema direita. Dessa forma, é muito difícil montar um governo.
A esquerda vitoriosa no segundo turno diz que não vai fazer coalizão com a direita liberal de Macron para governar. Ela diz que tem direito de governar e que o Macron deve, portanto, fazer o que é de praxe, que é nomear o primeiro-ministro do grupo vencedor.
O problema é que a Constituição francesa dá muitas prerrogativas para o Macron. Ele pode nomear quem quiser, nada constrange o Macron a nomear quem ele quiser, de qualquer grupo político. Essa é a raiz do impasse atual. Ele não está obrigado a nomear um primeiro-ministro da Frente Popular ainda que a Frente Popular tenha ganhado as eleições.
O esperado, claro, seria o gesto de respeitar o voto popular, de respeitar a voz das urnas que deu a vitória para esse grupo.
Mas Macron está falando o seguinte: não é bem assim, a vitória foi muito apertada, vou nomear meu candidato.
Ainda não se sabe o que ele vai fazer.
Qual é o risco? O risco é você ficar numa situação de impasse em que, por exemplo, Macron usa a prerrogativa dele de nomear quem ele quiser e o Parlamento votar uma moção de desconfiança e derrubar o primeiro-ministro indicado.
Aí Macron nomeia outra pessoa. O Parlamento rejeita e o processo acontece sucessivamente. Isso gera uma enorme crise.
Para o sistema político francês voltar a ser funcional, vai depender das conversas de Macron com o parlamento e também da sua disposição de crise de respeitar o resultado das urnas.
No limite, se você tem esse impasse, perdurando no tempo, você tem até uma situação que pode levar a uma renúncia do Macron e a convocação de novas eleições presidenciais. É óbvio que isso está muito distante no horizonte. Mas enfim, nós estamos num contexto político aqui na França que ninguém imaginava que ele fosse dissolver o parlamento e ele dissolveu. Estamos vivendo situações meio inimagináveis aqui na França.
FALSA EQUIVALÊNCIA
Mélenchon certamente não se sentou com Macron para traçar a estratégia eleitoral. Pelo contrário. Macron não tem qualquer relação com a França Insubmissa. Macron odeia Mélenchon, odeia a esquerda radical e não tem nenhuma relação com Mélenchon. Em boa parte do primeiro turno, Macron usou o velho discurso das falsas equivalências, em que ele falava da França Insubmissa e da esquerda radical como se fossem um equivalente da extrema direita.
Só que não são equivalentes. A extrema direita é abertamente misógina, xenófoba, racista.
Vale lembrar que a tática de Macron de equivaler aesquerda à extrema direita foi amplamente mal sucedida nas urnas.
MACRON NÃO É CENTRO. ELE
REPRESENTA UMA DIREITA LIBERAL,
Não uso a categoria de centro para enquadrar o Macron. O campo macronista se elegeu pela primeira vez em 2017 apelando muito para esse discurso ‘não sou de direita nem de esquerda’. Esse é um discurso liberal clássico que, em geral, tende a ser da direita, da direita democrática, tolerante, mas da direita.
A partir de 2022, Macron tem adotado cada vez mais um discurso, uma linguagem, e ideias do campo da direita mesmo, e às vezes até da extrema direita em algumas questões. Então eu diria que o campo do macronismo é o campo da direita.
ACORDO TÁCITO
Logo após o primeiro turno, a esquerda e o macronismo fizeram uma espécie de acordo tácito e formaram uma Frente Republicana para barrar a extrema direita. Esse acordo já é tradicional na França e que ocorreu nas últimas duas eleições presidenciais.
Nas duas últimas eleições presidenciais, quando a Marine Le Pen, da extrema direita, esteve no segundo turno, a esquerda se uniu com a direita liberal e deu apoio expressivo ao Macron para barrar a Le Pen. O que aconteceu agora foi um pouco a reedição desse acordo.
EXTREMA DIREITA EM ASCENSÃO
No curto prazo, foi uma vitória importante da esquerda e que merece ser comemorada. Mas, se você analisa a médio prazo, há elementos preocupantes. A extrema-direita cresceu muito no parlamento francês quando comparamos com 2022. Hoje a direita tem uma quantidade de cadeiras no parlamento francês que nunca teve. E ela acabou de ganhar as eleições no parlamento europeu.
Existe uma tendência de ascensão da extrema direita. Essa tendência é inegável e ela não pode ser esquecida por causa de uma vitória circunstancial.
A recente vitória da esquerda na eleição legislativa foi muito apertada. Não podemos esquecer isso. Aliás, isso ocorre em vários países, inclusive no Brasil.
É preciso ficar claro que o resultado eleitoral circunstancial dessa eleição não anula, não invalida nem reverte automaticamente a tendência de médio e de longo prazo de ascensão da extrema direita.
LIÇÃO DA FRANÇA: FAZER ALIANÇAS PARA DERRUBAR A EXTREMA DIREITA
Ainda que existam circunstâncias muito específicas e conjunturais dessa eleição francesa, pode-se dizer que a estratégia de fazer aliança para derrubar o fascismo e a extrema direita é lição importante para o mundo.