De um lado, um líder enfraquecido politicamente que viu uma brecha para angariar simpatia em seu país, em plena guerra contra o grupo palestino Hamas. De outro, um presidente que tenta alçar seu país a um papel relevante nos organismos internacionais, no momento em que ocupa a presidência do G20. Esta semana, como num hipotético ringue, Benjamin Netanyahu e Luiz Inácio Lula da Silva levaram Israel e Brasil a um improvável embate diplomático em torno dos ataques israelenses ao grupo Hamas na Faixa de Gaza.
O estopim para o atrito foi uma entrevista coletiva do presidente Lula em Adis Abeba, onde participou da 37ª Cúpula da União Africana e de reuniões bilaterais com chefes de Estados do continente. Na entrevista, Lula comparou o que os palestinos vêm sofrendo em Gaza ao que os judeus sofreram sob Hitler (veja declaração completa no box). A reação de Israel foi imediata. O embaixador brasileiro naquele país, Frederico Meyer, foi exposto a uma reprimenda pública, em hebraico, e Lula foi considerado “persona non grata” em Israel.
Para o historiador Michel Gherman, professor do Programa de Pós-Graduação em História Social do IFCS/UFRJ e pesquisador do Centro de Estudos do Antissemitismo da Universidade de Jerusalém, a fala de Lula jogou um holofote sobre a anunciada invasão terrestre de Israel a Rafah, no sul da Faixa de Gaza, prevista para as próximas semanas. “A entrada em Rafah vai nos fazer lembrar os piores confrontos sangrentos que já tivemos na história. Você tem mais de um milhão de refugiados abrigados em cabanas no sul de Gaza. São pessoas que já fugiram do norte de Gaza, não têm outro lugar para ir, estão concentradas na fronteira com o Egito. Se o número de mortos civis já é assustador, com a possível entrada em Rafah vai ser terrível”, avalia Gherman.
Segundo o professor, a situação política em Israel é complexa. “Há uma crise econômica sem precedentes, com uma acentuada queda do PIB. Netanyahu tem uma rejeição enorme da população, na faixa dos 80%. E você tem os reféns feitos pelo Hamas, que estão lá à espera da libertação, mas setores do governo Netanyahu são contra qualquer negociação para a troca de reféns. Eu acho que o isolamento político de Israel, aliado à situação caótica interna, pode fazer de uma possível entrada em Rafah um suicídio político para Benjamin Netanyahu. Mas a não entrada também pode ser – ele vai perder a coalizão que o sustenta no poder. Nesse ringue hipotético, ele está nas cordas. Ou, entra em Rafah e promove um massacre, ou não entra, sai do governo e vai preso”.
Netanyahu já anunciou que o exército israelense invadirá Rafah no Ramadã, período sagrado para os muçulmanos que começa em 10 de março, caso o Hamas não liberte os reféns que mantém em seu poder desde o início do conflito, em 7 de outubro de 2023. Embora tenha restrições às declarações de Lula, Michel Gherman destaca a importância do alerta feito pelo presidente brasileiro. “É uma fala muito importante, que não pode ser cortada por uma declaração infeliz. O problema foi a comparação, historicamente equivocada, ao Holocausto. E o governo de Israel, de uma forma irresponsável, resolveu produzir ganho político com isso. Foi uma boia de salvação para Netanyahu, mas de curta duração”.
Na avaliação de Michel Gherman, se Netanyahu está nas cordas, o ex-presidente Jair Bolsonaro também está. Para o professor, a extrema direita brasileira, tão identificada com a israelense, tentará também obter ganho político com o embate diplomático. “Assim como seu colega israelense, Bolsonaro está às vésperas de uma prisão. A extrema direita daqui tenta desde o início desse conflito entre Israel e o Hamas “brasilizar” a questão. Isso deve ocorrer na Avenida Paulista (local da manifestação de domingo próximo), a transformação de Bolsonaro em defensor de Israel e de Lula como inimigo de Israel. Para a extrema direita brasileira também é uma boia de salvação”, crê Gherman.
As redes sociais bolsonaristas já trataram de amplificar o embate e chegaram a anunciar a presença no ato de domingo do embaixador de Israel no Brasil, Daniel Zonshine. Na avaliação de Fernando Brancoli, professor do Instituto de Relações Internacionais e Defesa (IRID-UFRJ), é bom lembrar que o atual governo de Israel tem fortes ligações com nosso governo anterior. “Netanyahu visitou Bolsonaro entre a vitória nas eleições de 2018 e a posse. Há um receio que no domingo, na passeata de Bolsonaro em São Paulo, o embaixador israelense no Brasil possa participar de alguma forma. Não me impressionaria se ele gravasse um vídeo ou algo parecido. Se isso acontecer, a fervura voltará a aumentar e ele poderá até ter que sair do Brasil. A Convenção de Viena proíbe que diplomatas participem de manifestações políticas”, lembra Brancoli.
O professor ressalta que a fala de Lula se insere num contexto mais amplo de reforma dos organismos internacionais. “A fala tem que ser entendida no lugar em que ele estava. Não foi feita em Brasília. Ele estava na Etiópia, na reunião da Cúpula Africana, com a participação de países islâmicos do norte da África e do Golfo. Um espaço de países do Sul global que argumentam, assim como o Brasil, que os mecanismos internacionais para a solução de crises não estão funcionando. E não funcionam porque são essencialmente centrados nos países mais influentes do Norte. A fala do Lula se enquadra nessa lógica”.
Segundo Brancoli, Lula passou os últimos dois dias antes de sua fala em Adis Abeba reunido com lideranças palestinas e africanas. E suas declarações foram feitas no momento em que Israel anuncia a invasão de Rafah. “Estou numa conferência nos Estados Unidos debatendo esse tema e a expectativa é que essa invasão vai ser um massacre. Estamos falando de uma cidade que tinha anteriormente 170 mil pessoas e que hoje tem um milhão e meio. Até os Estados Unidos, que são apoiadores de primeira hora de Israel, já se posicionaram contrários a uma entrada em Rafah. Mas é o que pode acontecer nos próximos dias, e acho que a fala do Lula serve também para chamar atenção em relação a esse movimento”.
ALERTA
Para Leonardo Valente, também professor do IRID-UFRJ, a reação de Israel às declarações de Lula foi estrategicamente pensada. “A reação foi totalmente midiática. Tudo na política externa é muito bem pensado, e Israel é experiente nisso. Havia uma ideia de desmoralização do Brasil, e isso já aconteceu em 2014, quando nosso governo fez críticas aos ataques de Israel contra os palestinos e fomos qualificados como “anão diplomático”. Israel tem uma estratégia midiática muito agressiva, sempre teve. É necessário vitimizar Israel, amplificar a questão e tentar deslegitimar a atuação internacional do Lula e da diplomacia brasileira”, analisa Valente, que tem estudos recentes que integram as Relações Internacionais à Comunicação, especialmente diplomacia midiática.
A fala de Lula, segundo Valente, chamou a atenção do mundo para os horrores que vêm ocorrendo em Gaza. “É assustadora essa normalização do massacre que está ocorrendo em Gaza. Claro que houve um ataque terrorista do Hamas, que precisa ser punido, mas isso justifica as ações de Israel em Gaza, matando mais de 20 mil civis? O que está ocorrendo lá, mais do que uma tentativa de resgatar os reféns, é uma matança étnica. Faz pensar se de fato o principal objetivo do governo Netanyahu é resgatar os reféns. Ou se é reduzir a população palestina para anexar territórios, uma política de extermínio. E o Lula deixou isso claro na fala dele”.
Se ficou restrito a Israel e Brasil, sem maiores repercussões em outros países, o embate diplomático suscitado pelas declarações de Lula acendeu um farol sobre os próximos movimentos do exército israelense na Faixa de Gaza. Um possível ataque a Rafah e suas consequências estarão agora sob os olhares do mundo inteiro.
A ESCALADA
Domingo, 18 de fevereiro
Em entrevista coletiva em Adis Abeba, onde participou da 37ª Cúpula da União Africana e de reuniões bilaterais com chefes de Estados do continente, o presidente Lula falou sobre os ataques de Israel à Faixa de Gaza. Eis a fala literal de Lula:
“É muito engraçado. Quando eu vejo o mundo rico anunciar que está parando de dar contribuição para a questão humanitária aos palestinos, eu fico imaginando qual é o tamanho da consciência política dessa gente e qual é o tamanho do coração solidário dessa gente que não está vendo que na Faixa de Gaza não está acontecendo uma guerra, mas um genocídio”.
“De que não é uma guerra entre soldados e soldados, é uma guerra entre soldados altamente preparados e mulheres e crianças. Olha, se houve algum erro nessa instituição que apura dinheiro, que se apure quem errou. Mas não suspenda a ajuda humanitária a um povo que está há quantas décadas tentando construir o seu Estado”.
“O Brasil não apenas afirmou que vai dar contribuição — eu não posso dizer quanto porque não é o presidente quem define. É preciso ver quem é que cuida disso no governo para ver quanto é que vai dar. O Brasil disse que vai defender na ONU a definição de o Estado palestino ser reconhecido definitivamente como Estado pleno e soberano”.
“É importante lembrar que em 2010 o Brasil foi o 1º país a reconhecer o Estado palestino. É preciso parar de ser pequeno quando a gente tem que ser grande. O que está acontecendo na Faixa de Gaza e com o povo palestino não existe em nenhum outro momento histórico. Aliás, existiu quando Hitler resolveu matar os judeus”.
“Então não é possível que a gente possa colocar um tema tão pequeno, sabe, você deixar de ter ajuda humanitária. Quem vai ajudar a reconstruir aquelas casas que foram destruídas? Quem vai retribuir a vida de 30.000 pessoas que já morreram, 70.000 que estão feridos? Quem vai devolver a vida das crianças que morreram sem saber por que estavam morrendo?”.
Segunda-feira, 19 de fevereiro
O embaixador do Brasil em Israel, Frederico Meyer, foi convocado pelo chanceler israelense, Israel Katz, para uma reunião no Museu do Holocausto, em Jerusalém, onde recebeu uma reprimenda pública (foto ao lado). No encontro, Lula foi classificado como “persona non grata” por Israel.
O Itamaraty chamou Meyer de volta ao país. O ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, reuniu-se com o embaixador israelense no Brasil, Daniel Zonshine, e manifestou insatisfação com o tratamento dado ao embaixador brasileiro.
Nas redes sociais, o chanceler israelense, em texto escrito em português, diz que a declaração de Lula foi um “grave ataque antissemita que profana a memória dos que foram mortos no Holocausto”.
Terça-feira, 20 de fevereiro
Mais uma vez usando um texto em português nas redes sociais, Israel Katz afirma, dirigindo-se diretamente ao presidente Lula: “Que vergonha. Sua comparação é promíscua, delirante. Vergonha para o Brasil e um cuspe no rosto dos judeus brasileiros”.
O ministro Mauro Vieira reage às postagens de Katz: “As manifestações do titular da chancelaria do governo Netanyahu, de ontem e de hoje, são inaceitáveis na forma, e mentirosas no conteúdo. Uma chancelaria dirigir-se dessa forma a um chefe de Estado, de um país amigo, o presidente Lula, é algo insólito e revoltante. Em mais de 50 anos de carreira, nunca vi algo assim”.