‘Ninguém vai impedir/A universidade agora é trans e travesti/E não-bi-ná-rie!”. Com esse animado canto, dezenas de estudantes saudaram a aprovação das cotas para pessoas trans na UFRJ em uma lotada e histórica reunião do Conselho Universitário do último dia 30. A política afirmativa reserva, no mínimo, 2% das vagas para cada curso e turno de graduação ou programa de pós-graduação stricto sensu.
Para a graduação, a medida valerá já para o próximo Sistema de Seleção Unificada (SiSU), com entrada de estudantes para 2026. Quando o índice aplicado sobre a oferta de vagas resultar em número fracionado, será adotado o número inteiro imediatamente superior.
A mesma regra será utilizada nos editais da pós-graduação, mas ainda haverá uma regulamentação pelo Conselho de Ensino para Graduados (CEPG). A pró-reitoria de Pós-graduação e Pesquisa informou à reportagem que a Resolução CEPG nº 118/2022, sobre ações afirmativas, precisará ser revisada.
A aprovação das cotas trans acabou se tornando uma resposta simbólica da universidade à maior chacina da história do Rio de Janeiro, dois dias antes. “É inadmissível que o Estado só entre na favela com política de morte. Nunca entra com equipamento de saúde, de cultura, de educação. Quando a gente fala de cotas trans, a gente fala exatamente sobre acesso à saúde, cultura, educação e arte. A gente fala sobre viver e viver bem”, afirmou a conselheira discente Arthura Rocha, primeira representante trans da história do Consuni. “A gente defende a ação afirmativa porque queremos que a favela esteja aqui dentro da universidade. E não na mira do fuzil”, completou.
Arthura avalia que as novas cotas, além de ampliar a diversificação do corpo social da UFRJ, também poderão levar a um aumento de representatividade nos colegiados e cargos de poder da instituição. “Sou a primeira pessoa trans, travesti e não binária a ocupar este conselho. E, provavelmente, não serei a última. Espero não ser a última”, disse. “Consigo imaginar facilmente uma UFRJ com cada vez mais professores e técnicos trans, travestis e não binários. Inclusive uma reitoria, quem sabe?”, questionou.
A votação chamou atenção de fora da universidade. Primeira mulher trans eleita para a Alerj e primeira doutora trans formada pela UFRJ, Dani Balbi compareceu à reunião para falar aos conselheiros. “A adoção de cotas trans é fundamental para a vida dessas pessoas. E a qualidade da universidade melhora, quanto mais diversa ela é. Novas linhas de pesquisa surgirão a partir da diversificação do corpo social desta universidade”, disse.
Depois, em suas redes sociais, a deputada comemorou o resultado: “Essa é mais uma vitória da luta por uma educação verdadeiramente inclusiva. Seguimos firmes, com coragem e esperança, para que todas, todos e todes tenham oportunidades e mais direitos”, afirmou.
CONTRA A VIOLÊNCIA
Por 16 anos consecutivos, o Brasil é o país que mais assassina pessoas trans e travestis no mundo. O triste dado foi lembrado, entre outros conselheiros, pela pró-reitora de Graduação, professora Maria Fernanda Quintela, para justificar a aprovação das cotas trans. “A UFRJ contribuirá para o enfrentamento de um quadro comprovado de exclusão e violência, documentado pelos principais observatórios de direitos humanos do Brasil”.
A medida teve o apoio também da pró-reitoria de Pós-graduação e Pesquisa. O pró-reitor João Torres informou que o Conselho de Ensino para Graduados aprovou uma carta de apoio às cotas para pessoas trans — e também para quilombolas e refugiados — nos programas de pós da universidade, no fim do ano passado. “A oferta de vagas para pessoas trans, quilombolas e refugiados na pós-graduação representa avanço significativo na democratização do ensino e na promoção de uma universidade de excelência verdadeiramente plural e acessível a todos”, diz um trecho do documento lido pelo dirigente.
“Cotas para pessoas trans no ingresso da UFRJ representa uma resposta ética, democrática e constitucional a um contexto real de exclusão”, reforçou o reitor Roberto Medronho. “Tal política não garante apenas o acesso, mas expande direitos, fortalece a universidade e promove uma sociedade mais justa e plural”.
“Estou muito feliz e orgulhoso”, disse Medronho logo após a votação. Mas fez um alerta. “A luta não acabou. Está começando agora. Teremos muita resistência no nosso corpo social também. Da sociedade, vocês já estão vendo a quantidade de haters no post da universidade. É o início de uma longa jornada pela reparação e inclusão das pessoas trans na UFRJ”, concluiu.
COMO VAI FUNCIONAR?
No acesso aos cursos de graduação, as pessoas trans contempladas serão aquelas que tiverem cursado o ensino médio integralmente em escola pública ou em escola comunitária que atua em educação do campo, conveniada com o poder público.
- O índice de 2%, já adotado por outras universidades, é baseado em estimativas de pessoas trans na população brasileira. Na UFRJ, o percentual será reavaliado pelo Conselho Universitário a cada dez anos ou de acordo com os dados mais recentes do Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
- A reserva de vagas para pessoas trans não vai afetar o quantitativo das demais políticas afirmativas previstas em lei. A pessoa trans concorrerá, concomitantemente, às vagas reservadas e às vagas destinadas à ampla concorrência. A vaga reservada a pessoas trans não ocupada por ausência de candidato habilitado, em determinado curso, turno e local de oferta, será remanejada para a ampla concorrência.
- Poderá concorrer às vagas reservadas à pessoa trans aquela que autodeclarar essa identidade no ato da inscrição, devendo validar essa condição posteriormente com documentação que será definida pela Superintendência Geral de Ações Afirmativas, Diversidade e Acessibilidade (SGAADA).
- A comprovação da elegibilidade à vaga reservada a pessoas trans e sua ratificação será realizada por Comissões de Validação das Ações Afirmativas instituída pela Reitoria da UFRJ e será disciplinada no edital do processo seletivo.
- A nova resolução foi publicada no Boletim da UFRJ no dia 3 e pode ser consultada, na íntegra, pelo site do Conselho Universitário.





