“Esse manto traz ao Brasil toda a força dos nossos encantados, dos nossos ancestrais, para termos de volta nossos direitos de vida. Não só para o povo tupinambá, mas para todo o povo originário do Brasil”, disse a cacica Jamopoty, líder da tribo tupinambá de Olivença, na Bahia, de onde é originário o manto de penas vermelhas de ave guará e fibras vegetais, de 1,20 metro de altura por 60 centímetros de largura, confeccionado no século XVII, e considerado sagrado pela etnia. Na tradição tupinambá, a vestimenta é usada em cerimônias de casamento e rituais diversos, e abriga um espírito ancestral.
Em sua fala de boas-vindas, o reitor da UFRJ, Roberto Medronho, destacou as contribuições da universidade. “Desde o pré-sal à repatriação deste maravilhoso manto, a UFRJ teve papel fundamental para o desenvolvimento do país. A ciência voltou, o Brasil voltou, e nós estamos na linha de frente da reconstrução.”
As negociações finais para a volta da relíquia ao Brasil foram feitas entre os dois museus, com apoio das embaixadas e do Ministério das Relações Exteriores. Mas começaram há 24 anos, mais exatamente nas controversas comemorações dos 500 anos de descobrimento do Brasil. Naquele ano, o manto tupinambá foi trazido da Dinamarca e exposto em uma mostra no Parque do Ibirapuera, em São Paulo. Ali, foi reconhecido pela tupinambá Nivalda de Jesus, conhecida como Amotara, cuja memória foi lembrada na cerimônia pela cacica Jamopoty. Os tupinambás chegaram a pedir à Procuradoria da República para que o manto ficasse no Brasil, mas ele voltou para a Dinamarca — de onde só voltou em julho deste ano.
A repatriação da peça foi cercada de sigilo — e muito criticada pelos tupinambás por isso. Os representantes indígenas queriam ir até Copenhague para acompanhar o retorno do manto, mas não houve recursos para a viagem. O sigilo foi uma exigência do Museu Nacional da Dinamarca, por questões de segurança, e os tupinambás só souberam da chegada da relíquia quando ela já estava no Rio de Janeiro. Os indígenas tiveram duas sessões privadas de recepção e vigília ao manto no início da semana passada, antes da cerimônia oficial de quinta-feira (12).
O Museu Nacional da Dinamarca tem outros quatro mantos tupinambás confeccionados no Brasil entre os séculos XVI e XVII e um deles saiu da reserva técnica e foi colocado na vitrine onde estava o que foi repatriado. Há outros seis mantos em museus da Itália, Bélgica, Suíça e França. O governo brasileiro tem se empenhado na repatriação de objetos levados daqui pelos colonizadores europeus. Só este ano, 585 artefatos indígenas foram recuperados. Eles estavam no Museu de História Natural de Lille, na França, e são oriundos de mais de 40 povos originários brasileiros.
O Museu Nacional espera que o manto seja uma das principais atrações de seu acervo, a ser aberto ao público assim que forem concluídas as obras de reconstrução do Palácio de São Cristóvão, consumido por um incêndio em 2018. Os tupinambás, contudo, querem que a peça volte à Bahia. Contam, para isso, com um apoio de peso: o do presidente Lula. Em seu discurso na Quinta da Boa Vista, ele encomendou ao governador petista da Bahia, Jerônimo Rodrigues, presente à cerimônia, a construção de um museu para abrigar a relíquia.
“É um privilégio extraordinário participar como presidente da República deste momento tão especial, não só para os povos indígenas, mas para todos nós. Ao longo de nossa história, diversos itens indígenas atravessaram fronteiras e foram parar em museus europeus e de outros cantos do mundo. O retorno do manto sagrado tupinambá é o marco de uma nova história de conquistas dos povos indígenas. Ele está agora no Museu Nacional, mas eu espero que todos compreendam que o lugar dele não é aqui. Quero pedir a compreensão do governador da Bahia, que me disse que é tupinambá também. Ele tem a obrigação e o compromisso histórico de construir na Bahia um lugar que possa receber e preservar esse manto. Para nós ele é uma obra artística de rara beleza, mas para os tupinambás é uma entidade”, defendeu o presidente, ovacionado pelos tupinambás que lotavam a plateia com seus maracás.
O diretor do Museu Nacional, professor Alexander Kellner, não compareceu à cerimônia, pois estava em viagem ao exterior. O Jornal da AdUFRJ pediu a ele um posicionamento sobre a guarda da relíquia e sobre a reivindicação dos indígenas para que ela seja levada para a Bahia, mas não obteve retorno até o fechamento desta edição.
Instado por cobranças de lideranças indígenas, Lula também falou que seu governo tem como prioridade a demarcação de terras indígenas. Os tupinambás reivindicam a demarcação de territórios no sul da Bahia. As áreas estão delimitadas desde 2009 e ainda aguardam a demarcação. “O povo tupinambá, da mesma forma que as demais etnias indígenas, tem direito ao seu território. É uma luta justa, legítima”, disse o presidente, que prometeu se reunir esta semana com o ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, para tratar da demarcação dessas áreas. Com 47 mil hectares, a Terra Indígena Tupinambá de Olivença abriga 23 aldeias, com 8 mil habitantes, entre os municípios de Ilhéus, Uma e Buerarema.
CACICA JAMOPOTY LEMBRA LONGA LUTA E PEDE DEMARCAÇÃO
“O manto foi reconhecido por Amotara em 2000 em uma mostra dos 500 anos. Daquele dia para cá, nós lutamos para que o manto sagrado ficasse no Brasil. Mas ele voltou para a Dinamarca depois da exposição. Estou aqui representando Amotara, uma mulher forte, decidida, dedicada à família tupinambá”
“Eu sou a primeira mulher cacica do povo tupinambá de Olivença, sou a segunda do Brasil, e venho travando uma luta pela demarcação de nosso território. Esse manto traz ao Brasil toda a força dos nossos encantados, dos nossos ancestrais, para termos de volta nossos direitos de vida. Não só para o povo tupinambá, mas para todo o povo originário do Brasil. Há outros mantos como esse lá fora, mas esse é o manto sagrado de Amotara”.
“Senhor presidente, demarque as terras indígenas, dê um sossego ao povo indígena. Eu falo pela voz do meu ancestral. Estamos aqui no Rio de Janeiro desde 7 de setembro para fazer nossa vigília, para dizer ao manto: “Nós estamos aqui”. Ele voltou para que o Brasil seja um novo Brasil com sua história verdadeira, a história dos povos originários. Hoje eu estou feliz”.
PARLAMENTARES E LIDERANÇAS APOIAM INICIATIVA DO SINDICATO
A diretoria da AdUFRJ entregou um documento às autoridades presentes à cerimônia do manto tupinambá sobre a grave situação orçamentária da UFRJ. O texto ressalta a importância social, cultural e científica da universidade, mostra a contribuição dos pesquisadores para o desenvolvimento tecnológico do país e pede socorro para garantir a continuidade das aulas. “Estamos com mais de R$ 50 milhões contingenciados. Até recursos empenhados foram bloqueados “, explicou a presidenta da AdUFRJ, Mayra Goulart, para a deputada estadual Elika Takimoto (PT), presidente da Comissão de Ciência e Tecnologia da Alerj. “Estou junto com vocês, vamos tentar marcar audiências e reverter essa situação”, prometeu a parlamentar.
Mesma solidariedade foi declarada pela deputada estadual Marina do MST (PT). “Podem contar comigo”, garantiu. “Precisamos muito do apoio dos parlamentares. Nossa situação é muito grave, estamos sem recursos até para pagar as contas de luz e água. Os prédios estão péssimos”, contou a vice-presidenta da AdUFRJ, professora Nedir do Espirito Santo, docente universitária desde a década de 1970. “Nunca vi um quadro tão grave no campus. O mais triste é que a universidade muda a vida das pessoas, muda o destino. A falta de infraestrutura interrompe o cotidiano acadêmico e afasta os alunos”.
Um dos apoios mais emocionantes recebidos pela AdUFRJ durante a cerimônia do manto tupinamba foi da deputada federal Célia Xakriabá (PSOL-MG). Professora ativista indígena do povo Xakriabá em Minas Gerais, Célia encantou as diretoras da AdUFRJ. “Foi uma honra para nós o encontro com a deputada Célia nesse contexto aqui. Ela é uma referência na educação indígena e sabe das agruras de ser professora no Brasil”, ponderou a presidente da AdUFRJ, Mayra Goulart.
Uma das lideranças indígenas presentes também se solidarizou com a carta da AdUFRJ. Mari Tupinambá lidera o movimento de mulheres da aldeia de Olivença, na Bahia, pela construção de escolas indígenas. “Eu sei o que é ficar sem escola. A dos nossos curumins é de barro e está caindo”, contou Mari.
A integra da carta da AdUFRJ abaixo.
CARTA DA ADUFRJ AO PRESIDENTE LULA
Caro presidente Lula,
Bem-vindo. Somos professoras e professores da Universidade Federal do Rio de Janeiro, integramos a diretoria do sindicato docente e estamos profundamente emocionados com sua visita.
A presença de V. Exa. reacende o entusiasmo que nos mobilizou, em 2022, quando, de braços dados com o senhor, as universidades lutaram bravamente para livrar o Brasil de quatro anos de obscurantismo. Assim, com imensa alegria e alguma esperança, lhe entregamos esta carta. Alegria porque lutamos pela sua eleição e pela reconstrução de um Brasil justo, democrático e próspero. Esperança porque recebê-lo, é uma oportunidade de mostrar a importância da UFRJ para o país.
Somos mais de 65 mil estudantes, 4 mil professores e 8 mil técnico-administrativos em Educação. Atuamos em 175 cursos de graduação, 132 programas de pós-graduação stricto sensu e 1.779 ações de extensão. Temos mais de 1.450 laboratórios, 45 bibliotecas, um Parque Tecnológico com 350 mil metros quadrados, com startups e empresas de protagonismo nacional e internacional, nove hospitais universitários e oito museus.
A universidade formou uma sucessão de ex-alunos notáveis, como o indicado ao Prêmio Nobel da Paz Osvaldo Aranha; os escritores Jorge Amado, Vinícius de Moraes e Clarice Lispector; o arquiteto Oscar Niemeyer; os médicos Oswaldo Cruz e Carlos Chagas; o historiador Sérgio Buarque de Holanda; e o matemático Artur Ávila, primeiro latino-americano a receber a Medalha Fields, prêmio oferecido a matemáticos com até 40 anos e considerado equivalente ao Prêmio Nobel.
Aqui respeitamos nossa História, construímos e pensamos o futuro. Há duas semanas, organizamos o Festival do Conhecimento com o tema da Inteligência Artificial. No final do primeiro semestre, celebramos vitórias notáveis em pesquisas sobre o Alzheimer. O maior centro de pesquisa em engenharia da América Latina, a Coppe da UFRJ, descobriu o pré-sal e continua sendo a principal referência na área de óleo, gás e energias alternativas.
Na pandemia de Covid, nos desdobramos para ampliar a vacinação, realizar mais de 100.000 testes moleculares no Rio de Janeiro e em Macaé, difundir as medidas de combate ao vírus, pesquisar vacinas e combater ações anti civilizatórias defendidas pelas autoridades da época. Como fruto desse esforço, criamos o Núcleo de Enfrentamento e Estudos de Doenças Infecciosas Emergentes e Reemergentes (Needier). A unidade é responsável por estudar e dar respostas rápidas às epidemias e pandemias que afligem o mundo contemporâneo.
Hoje, graças à política de cotas, os alunos pretos e periféricos ocupam 50% das vagas na Graduação. São diversos, são muitos e têm pressa. De se formar, de trabalhar, de mudar de vida. Deixá-los sem aulas na universidade pública é deixá-los sem futuro. É também abrir a guarda para o retorno do negacionismo e do ódio ao conhecimento. Não queremos isso. De maneira alguma. Mas, para garantir que esta Universidade permaneça aberta, precisamos do apoio do governo brasileiro.
A UFRJ pede socorro.