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WhatsApp Image 2022 01 18 at 17.31.50Dani Ramos/DivulgaçãoHistoriadores e servidores alertam sobre uma preocupante política de desmonte do Arquivo Nacional, uma das instituições mais antigas do país. Gestores sem ligação com a área, problemas de infraestrutura e de pessoal e um polêmico decreto do governo Bolsonaro estariam comprometendo as atividades do órgão federal que acabou de completar 184 anos de fundação.
“A rotina do Arquivo Nacional é muito especializada. Demanda pessoal muito qualificado. Preocupa que os trabalhos não estejam sendo bem-feitos”, argumenta Carlos Fico, professor titular de História do Brasil do Instituto de História da UFRJ, em relação aos diretores nomeados pelo governo Bolsonaro — o atual, Ricardo Borda d’Água, que tomou posse no cargo em novembro do ano passado, era chefe de segurança do Banco do Brasil. Atirador esportivo, Borda já foi reconhecido como “colaborador emérito” do Exército.
O estreito vínculo entre o governo e os militares também cria desconfiança em relação à guarda do imenso acervo documental da ditadura militar brasileira, armazenado nas unidades do Rio e de Brasília do Arquivo Nacional. “Como se não bastasse, há o problema ideológico”, continua Fico. “É muito preocupante que gente tão retrógrada e reacionária esteja à frente do Arquivo Nacional”, completa.
O professor do Instituto de História fala com a experiência de quem frequentou o Arquivo Nacional a “vida inteira”, com exceção do recente período de pandemia. Foi naquela instituição, ainda nos anos 90, com a ajuda de uma amiga arquivista já falecida, Maria Odila Fonseca, que o docente teve a chance de pesquisar o primeiro grande acervo até então secreto da ditadura. “Fui o primeiro historiador brasileiro a fazer um livro — “Como Eles Agiam” (Editora Record, 2001) — sobre os órgãos de repressão da ditadura militar. Tive essa honra graças a uma arquivista”, lembra.
O receio com o viés ideológico implantado na instituição ultrapassa a gestão dos documentos. Fico observa que um concurso de monografias com base em fontes documentais do período do regime militar no Brasil deveria premiar os vencedores com a publicação dos trabalhos em formato de livro, o que não ocorreu na última edição. E já se passaram mais de três anos desde o resultado do prêmio Memórias Reveladas, em setembro de 2018. “Vemos que não há boa vontade da atual direção do Arquivo em relação a esse projeto”, afirma Fico.

DOCUMENTOS SOB RISCO
Outro componente da crise é o decreto nº 10.148, de 2019, assinado pelo então ministro da Justiça Sérgio Moro. “Ao Arquivo Nacional, cabe a consolidação dos procedimentos arquivísticos na administração pública, desde a produção até o descarte. Bolsonaro e Moro mudaram isso”, explica Jessie Jane, professora aposentada do Instituto de História. “O decreto mudou parte do decreto anterior, naquilo que fiz respeito à supervisão do Arquivo Nacional em relação aos documentos a serem descartados. Entenderam que permaneciam necessárias apenas as normas já definidas pelo Arquivo a serem aplicadas pelo próprio órgão produtor do documento”.
A medida, aparentemente burocrática, pode evitar que documentos importantes para futuras pesquisas sobre o governo Bolsonaro sejam eliminados, de acordo com a docente. “Imagine isso no Ministério do Ambiente. Imagine isso no ministério da Damares (Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos). Imagine isso nas empresas estatais que estão sendo dilapidadas. É muito grave”, critica Jessie, que já dirigiu o Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, de 1999 a 2002.

SEM REAJUSTE
E SEM CONCURSO
Internamente, os técnicos do Arquivo também estão preocupados com os rumos da instituição. “A principal preocupação é que ocorra no Arquivo o que já aconteceu em diversos órgãos da administração pública federal, como Ibama, Casa de Rui Barbosa e Funai: um esvaziamento e um desmonte do órgão”, desabafa Eduardo Lima, presidente da Associação Nacional dos Servidores do Arquivo Nacional.
A entidade realizou uma reunião com o diretor do Arquivo após a exoneração e remanejamento de servidores que ocupavam cargos de direção, no fim do ano passado. Existe a suposição de que as mudanças ocorreram após os profissionais expressarem preocupações com a política institucional. “A direção se defendeu das acusações, afirmando que o Arquivo passa por um processo de mudanças administrativas e que essas mudanças continuarão acontecendo”, disse Eduardo.
Os funcionários cobram reposição da inflação desde 2015, último ano em tiveram reajuste, e mais concursos. Atualmente, parte do quadro de pessoal é preenchida por servidores cedidos de outros órgãos federais. “Outra reivindicação dos servidores é a adoção de critérios democráticos para eleição do diretor-geral. Isso eliminaria uma série de problemas que o órgão vem tendo com indicações de pessoas que pouco têm a ver com a área”, acrescenta o dirigente da associação.
Mas os problemas não são apenas de ordem política. “Nesse momento, o Arquivo está com um problema no ar-condicionado central do conjunto tombado (o prédio foi tombado pelo IPHAN em 1938). Além de afetar a saúde dos servidores que têm que trabalhar nesse calor carioca, afeta também o acervo que fica exposto a uma maior proliferação de fungos. Até agora o problema não foi solucionado”, diz Eduardo. A previsão do conserto é até o fim do mês.

RESPOSTA DO GOVERNO
Em um longo comunicado disponível no site do Arquivo Nacional (AN), a diretoria se defende das críticas. Diz que as mudanças dos últimos anos fazem parte de “um amplo processo de aprimoramento institucional para o efetivo cumprimento de suas competências legais”. E que “seus projetos e ações estão previstos e detalhados no seu Planejamento Estratégico Setorial para o período 2020-2023”.
A direção também nega que o decreto do governo Bolsonaro de 2019 “abra caminho para a eliminação indiscriminada de documentos públicos e incorra no esvaziamento das competências” do Arquivo Nacional. De acordo com o comunicado, as regras visam aprimorar as atividades de gestão de documentos. “E tudo isso, evidentemente, sem prejuízo de salvaguardas contra a eliminação de documentos de valor histórico, probatório ou informativo”, acrescenta um trecho. Também informa que o orçamento do órgão vem sendo ampliado, apesar de todo o cenário de restrição fiscal. “Para 2022, o orçamento será 9% maior em relação a 2021, chegando a R$ 31,1 milhões”.
Até o fechamento desta edição, a assessoria de imprensa do órgão não respondeu aos questionamentos da reportagem sobre as demais críticas apresentadas pelos professores e pela associação local dos servidores.

184 ANOS DE HISTÓRIA

Criado em 2 de janeiro de 1838 como Arquivo Público do Império, o Arquivo Nacional atua na gestão dos documentos produzidos em todos os órgãos federais e exerce a função de salvaguarda de importantes acervos da história do país.
Com unidades no Rio e em Brasília, o órgão guarda milhões de documentos, fotografias, desenhos, mapas, filmes e registros sonoros. Entre eles, alguns “tesouros”, como os originais da Constituição de 1824, da Lei Áurea e da sentença proferida contra os líderes da Conjuração Mineira de 1792.
A sede, no Rio, fica em um prédio construído em estilo neoclássico e tombado em 1938 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, nas proximidades da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ.

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