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Currículos de medicina e outras profissões de saúde são objeto permanente de reformas e reflexões desde o início do século XIX. A formação de bons profissionais, com conhecimentos empíricos e teóricos, foi um enorme desafio quando as escolas médicas não tinham atividades de pesquisa. Atualmente requer-se que médicos, além de conhecimentos e capacidades técnicas, possuam habilidades relacionais com pacientes, seus parentes e opinião pública. Estimula- -se a empatia (atributo cognitivo que permite intuir sentimentos, detectar pistas não verbais, dispor-se a estar perto, compartilhar saberes, decisões terapêuticas). Não se trata de ter pena de quem sofre, propensão à caridade ou mesmo simpatia – emoções que podem ser respondidas negativamente pelos pacientes. O contrário da empatia é o cinismo, que se desenvolve em função das longas jornadas de trabalho, competição por melhores postos de trabalho, hierarquias estabelecidas sem mérito e constatações sobre práticas negativas de médicos mais velhos. Para conter o cinismo, é preciso debater, questionar se o lugar dos médicos é acima ou ao lado dos demais cidadãos. As atuais eleições definirão se o SUS seguirá se afirmando como expressão institucional do direito universal à saúde ou se consolidará como uma organização de caridade. Haddad se compromete com aumento de recursos financeiros para a saúde, com a formação adequada de profissionais de saúde em universidades públicas. O programa eleitoral de Bolsonaro para a saúde declara ser “possível fazer muito mais com os atuais recursos!”, posicionamento que é divergente da maioria dos candidatos no primeiro turno. Enquanto Haddad detalha programas e atividades a serem implementadas e expandidas, Bolsonaro apresenta intenções sobre a melhoria de inserção profissional de médicos, professores de educação física e dentistas. Os médicos seriam credenciados universalmente, professores de educação física integrariam equipes de saúde da família e dentistas atenderiam gestantes. São sugestões já testadas ou incorporadas, que supostamente conferem relevo aos profissionais de saúde. Propostas que deixam os pacientes e o SUS para trás representam um enorme retrocesso. Sem compromissos com a melhoria das condições de vida e saúde, sem compreensão sobre as necessárias relações respeitosas entre humanos e ritmos da natureza é inviável atender interesses profissionais, por mais legítimos que sejam. É um sistema de saúde abrangente e qualificado que permite o trabalho digno. Sem SUS prevalece o cinismo. Lígia Bahia Professora da UFRJ, especialista em Saúde Coletiva e vice-presidente da Adufrj

Não resisto a iniciar este artigo comentando o recente fato absurdo de, por ordem da Justiça, ter sido removida pela polícia uma faixa fixada no interior do campus da Universidade Federal Fluminense (UFF) com os dizeres “Direito da UFF Antifascista”. As conclusões desse fato são: 1- Houve uma arbitrariedade policial a mando da Justiça contra a autonomia da Universidade, tratada como equivalente a logradouros públicos em geral, contra o que protestei em artigo na imprensa há tempos atrás. 2- Se o antifascismo no Brasil é julgado ser um crime, logo o correto segundo a Justiça é ser fascista. 3- Se a faixa foi vista como uma manifestação não apenas contra a ameaça fascista mas a favor do candidato Haddad, então a Justiça entende que o candidato Bolsonaro é fascista. Essa constatação indica que o autoritarismo extremista de direita já vigora no atual governo, originado de um golpe parlamentar que depôs a presidente Dilma, legitimamente eleita e honesta. À primeira vista isto pode parecer contraditório com o medo que inspira a possível eleição do seu sucessor de extrema direita. A contradição é esclarecida se consideramos que há uma continuidade entre Temer e Bolsonaro, embora com métodos politicamente mais radicais. Ela é explícita pela política econômica neoliberal de ambos, daí o apoio do empresariado ao candidato da direita. E há o papel parcial e conservador da Justiça em geral, salvo honrosas exceções, contra a esquerda e a democracia. A operação lava-jato eliminou a candidatura de Lula, primeiro colocado na pesquisa eleitoral, condenado por ter recebido de uma empresa um apartamento que não recebeu. Repete-se como uma farsa trágica o exemplo histórico da Itália: a operação “mani pulite” levou Berlusconi ao poder, como a operação lava-jato leva Bolsonaro a ganhar a eleição, alavancado por consultoras de implantação de fake news por robots informáticos, em nome do combate à corrupção. Esta última de fato existe há muito tempo e o PT no poder não a impediu como demonstraram os lamentáveis episódios na Petrobras, apesar do apoio que deu ao Ministério Público e da criação da Controladoria Geral da União (CGU) em nível de ministério. Mas, também em nome do combate à corrupção, a direita e o presidente Carlos Luz tentaram impedir a posse do presidente eleito Juscelino, garantida pelo general Teixeira Lott, um militar nacionalista apoiado pela esquerda, pela qual concorreu depois a presidente da República. O que esperar então do próximo governo com Bolsonaro? Em primeiro lugar haverá uma combinação de direitismo extremado com liberalismo econômico. Os exemplos de direitismo de Trump nos EUA e de Marine Le Pen na França são ambos nacionalistas, embora esta palavra nos países ricos tenha significado diferente do que significa em países não desenvolvidos como o Brasil. Trump proclama “America first”, enquanto Bolsonaro faz continência para a bandeira norte-americana e promete privilegiar as relações com os EUA e reduzir as taxas de importação de produtos norte -americanos. Quanto às privatizações anunciadas pelo seu assessor Paulo Guedes, elas foram desmentidas pelo candidato pelo menos das empresas vistas como estratégicas. Muito preocupante é a defesa pelo candidato da tortura e da perseguição política praticadas pela ditadura militar originada do golpe de 1964, contra as quais teremos de nos mobilizar na sociedade para que não voltem pelas mãos de seus seguidores mais radicais. E um deles assassinou um mestre de capoeira na Bahia por se declarar eleitor de Haddad. Luiz Pinguelli Rosa Professor Emérito da Coppe

Na manhã de 31 de março de 1964, a professora Maria Lúcia Teixeira Werneck Vianna deixou a maternidade com seu primeiro filho nos braços e um enorme aperto no peito. Aos 21 anos de idade, Marilu não sabia se João Pedro cresceria num Brasil capturado pela barbárie ou num país reinventado pelos sonhos libertários que sua família acalentava. Àquela altura os brasileiros se dividiam entre os que flertavam com o golpismo e os que deviam lealdade à democracia. Os Teixeira eram radicalmente democratas. “Meu pai era homem tão crédulo em seus ideais que no dia que João Pedro nasceu encheu o quarto do hospital de rosas vermelhas e comemorou a chegada do neto em tempos vermelhos”, conta. O brigadeiro Francisco Teixeira, pai de Marilu e de mais três rapazes, um deles o ex-reitor da UFRJ, Aloísio Teixeira, cumpriu uma carreira pródiga nas Forças Armadas. Simpatizante do Partido Comunista, sempre esteve alinhado aos princípios do nacionalismo. Participou da campanha O Petróleo É nosso, chefiou o gabinete do Ministro da Aeronáutica na Era JK, e no ápice da crise do governo Jango, comandava a 3ª Zona Aérea do país. Era um cargo estratégico para a segurança nacional naqueles conturbados anos. “Meu pai estava pronto para resistir. Tinha certeza que sua tropa resistiria, enfrentaria os traidores da Constituição e garantiria a democracia”. A esperança e a ilusão do brigadeiro se transformaram em 21 anos de pesadelo. Francisco Teixeira foi preso quatro vezes durante a ditadura. Seu filho Aloísio ficou na cadeia seis meses. Sua casa foi misteriosamente incendiada. Mudaram de endereço várias vezes. A mãe de Marilu não sofreu apenas o terror de ver o marido e os filhos perseguidos. Enfrentou a humilhação de ser declarada viúva de marido vivo. O brigadeiro foi aposentado compulsoriamente e declarado morto para as Forcas Armadas. Para a filha, no entanto, ele era o mais vivo dos pais, era literalmente seu anjo da guarda, como conta pela primeira vez em um emocionante depoimento sobre os dez dias de prisão e tortura em 1970: “Eu estava sendo perseguida. Queriam saber do meu marido, um cientista político cassado pelo regime. Era véspera da Copa do Mundo. Estava em meu apartamento ao lado do prédio dos meus pais, quando três militares tocaram a campainha. Foi horrível, meus filhos estavam no elevador com meu irmão mais novo. Ele fazia gestos para as crianças não falarem nada. Coitados, eles lembram até hoje. Tinham cinco e seis anos de idade, ficaram nervosos e falaram na frente dos militares que não iam falar nada. Meu irmão correu e avisou ao meu pai. Ele veio correndo para o meu apartamento e disse que só me levariam se o levassem junto. Ele foi preso por minha causa, para me proteger. Fomos vendados, num fusca, de Botafogo até a Tijuca, no Quartel da Polícia do Exército. Meu pai foi colocado numa cela em frente à minha. Deram uma vassoura para ele, era obrigada a passar o dia varrendo o chão. Um brigadeiro. Toda hora falavam para mim: ‘olha o papai lá’. A pior parte era descer para o interrogatório. Todo dia, dez dias seguidos. Eles queriam saber onde estava meu marido. Eu não dizia. Eles davam choques em meus braços e me ameaçavam mostrando o pau de arara. Depois me deixavam na cela, ouvindo os gritos desesperados de meus companheiros. Foi muita angústia, eu passava o tempo fazendo barquinhos de papel. Guardo até hoje. Eu resisti, mas não esqueci. Não esqueci dos efeitos sobre meus filhos, do medo deles, do impacto sobre suas vidas. Não quero que isso se repita com meus netos. Hoje temo por eles. E pelo Brasil.” Marilu está transformando seu medo em luta. Aposentada, septuagenária, preside a Adufrj com garra. “A universidade está ameaçada. São tempos diferentes. Hoje temos instituições mais sólidas, mas o risco à democracia é real. Sou de uma geração iluminista que encara a luz como a única saída para a produção do conhecimento. Não podemos deixar as trevas e o medo voltarem”, conta a mãe de João Pedro, o primogênito que saiu da maternida na véspera da mais longa noite brasileira e que ganhou o nome de um bravo líder camponês assassinado. “Precisamos de heróis”.

Roberto Lent, professor Emérito da UFRJ Queridos netos, hoje quero lhes contar uma história diferente. Há quase 50 anos, num dia ensolarado de agosto, com 20 anos de idade, seu avô se viu com uma pequena sacola de roupas em frente ao Arsenal de Marinha no Centro do Rio de Janeiro, sem saber como fazer para chegar em casa. Exatos dois meses antes, num final de madrugada, um pelotão de fuzileiros navais tinha invadido a casa de meus pais (seus bisavós!), onde eu morava, levando-me para uma prisão numa ilha da Baía de Guanabara, com nome poético mas um ambiente nada parecido: a Ilha das Flores. Lá permaneci preso incomunicável pelos 25 dias seguintes, e depois numa cela coletiva até completar 60 dias de prisão. Não houve processo judicial que corresse normalmente, porque naquela época quem mandava eram os militares, e não o presidente e os parlamentares escolhidos pelo povo, ou os desembargadores avalizados pelos parlamentares para os tribunais superiores. Em minha casa, encontraram muitas armas perigosas – os livros que meus pais compravam semanalmente para a família. A biblioteca foi posta ao chão, em busca daquelas outras armas de verdade, que eles têm mas eu não tinha. Ainda conservo essa biblioteca em casa, e alguns desses livros são os que vocês folheiam com curiosidade quando vão iluminar minha casa. No ano seguinte, a biblioteca ficou sem uso porque meu pai, que era um cientista e nunca exerceu cargo político, foi demitido do Instituto Oswaldo Cruz, proibido de trabalhar em qualquer entidade pública, e assim forçado a transferir-se para o exterior para não morrer de fome. Nenhuma acusação formal foi feita: ficou por isso mesmo. Bem, a experiência sofrida na prisão me fez conhecer a falta que faz uma palavrinha estranha que vocês ainda não aprenderam: democracia. Algo que aprendi a admirar, cultivar, respeitar, e praticar na sequência de minha vida de aluno de medicina, aprendiz de pesquisador, professor universitário, cientista e avô de vocês. A democracia passou a ser um valor enraizado nos meus pensamentos. Compreendi-a como uma arma do cotidiano, com a qual não precisamos matar ninguém, mas sim tentar convencê-los (ou convencer-nos). Com a democracia podemos conversar abertamente com nossos amigos ou com desconhecidos, na escola, no trabalho, na rua, no restaurante. Divergir, convergir, pensar, concluir, e escolher trajetos para o nosso país. Por que estou escrevendo tudo isso que vocês ainda não compreendem? Porque quero que leiam a minha carta quando puderem. Talvez eu já não esteja com vocês como hoje, mas quero que levem com vocês em suas vidas essas palavras meio tristes do vovô. Tristes sim, porque penso que estamos atravessando um momento muito parecido com aquele que eu vivi na juventude, e que não quero que vivam vocês na juventude que terão daqui a alguns anos. Mas vamos direto ao ponto. Quero que saibam que, no ano de 2018 seu avô preferiu votar em Fernando Haddad do que em Jair Bolsonaro. A vida, como alguém já disse, é a ciência do necessário e a arte do possível. É necessário votar, por isso não uso o voto nulo nem o voto em branco – porque na verdade não são votos, e representam mais indiferença do que protesto: deixamos para os outros resolverem. É necessário votar no imprescindível, isto é, na democracia. E é inescapável escolher o possível, isto é o candidato que nos dê mais garantias de que a democracia será mantida e respeitada. Aquela mesma democracia que faltava quando seu avô saiu da prisão aos 20 anos, e que temos que preservar para que vocês a alcancem aos seus 20 anos. Não posso votar em Jair Bolsonaro porque seus valores negam esses princípios de minha vida inteira. Não posso apoiar quem rejeita as minorias e os diferentes, quem desrespeita as mulheres e os negros, os homossexuais e os opositores políticos. Não consigo escolher para me governar, alguém que nos ameaça com “autogolpes”, escolas militarizadas, venda indiscriminada do patrimônio do Brasil, assassinatos e tortura, e tantos outros absurdos. Essa é a opção necessária. Mas a democracia me dá uma única e imperdível opção possível: votar em Fernando Haddad, que se propõe a manter em funcionamento as nossas instituições, a valorizar a educação e a saúde públicas, enfim, a desenvolver o lado bom dos governos antecessores de seu partido. O lado bom, sim, porque ocorreu também um lado ruim que não podemos aceitar e temos que criticar: a corrupção institucionalizada, principalmente. Mas, com toda a divergência que tenho em relação aos governos anteriores, reconheço que a democracia funcionou plenamente, e é por isso que estamos votando agora, e também por isso que lhes escrevo esta carta que já vai longa demais. Meus queridos netos, quero que saibam que em 2018 votei pela democracia e pela liberdade de vocês, contra o autoritarismo e a militarização do Brasil. As memórias de minha vida inteira não me deixam outra alternativa: o voto contra Bolsonaro é o necessário; o voto em Haddad é o possível. Um beijo no coração, Vô Rob.

Eduardo Viveiros de Castro, professor emérito do Museu Nacional da UFRJ Em um passado não muito distante, o Brasil foi louvado como “o país do futuro” por um escritor judeu que aqui chegou fugindo do nazismo. Eis que agora, em um futuro muito próximo, o Brasil pode voltar a ser um país do passado. De um passado que nunca passou completamente. Um passado que parece não conseguir acabar de passar. Um passado de escravidão, de racismo, de violência genocida, em que os povos brasileiros eram subjugados por uma elite espantosamente cínica, insaciavelmente gananciosa, absolutamente implacável em sua sede de dominação e de lucro. Um passado cada vez mais presente, cada vez mais iminente, que nos levará para os tempos sombrios anteriores às décadas em que estivemos formalmente livres da ditadura. As conquistas obtidas nessas últimas décadas, no sentido da extensão dos direitos fundamentais, da justiça social, da redistribuição de renda, a consagração de um país mais justo com a promulgação da Constituição Federal de 1988, tudo isso se vê hoje ameaçado de anulação, em um retrocesso histórico que poucos países do mundo já experimentaram. Nossa pobre democracia cada vez mais se mostra uma democracia consentida por uma casta militar que se julga tutora da nação — essa nossa democracia está em perigo de vida. Nunca acertamos as contas com a escravidão, o etnocídio, a exploração desenfreada do povo, a tutela militar, o autoritarismo profundo, que sempre marcaram nossa história. Agora estamos vendo o quanto isso nos pode custar. É preciso resistir. É preciso repelir o ódio representado por um candidato à presidência que alia uma total incompetência para governar a um discurso moralmente repugnante; que louva a tortura, que não disfarça seu racismo, sua misoginia, sua homofobia, seu desprezo pelos pobres, sua admiração estúpida pela violência. Seu elogio da morte. Não podemos deixar se realizar o impensável que seria a transformação do Brasil em um país fascista. É preciso resistir. Vamos resistir.  

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