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O poeta e o equilibrista

1127WEBABRENinguém precisa ter mais de cinquenta e cinco anos e ter participado da luta pela anistia para reconhecer e amar a canção “O bêbado e o equilibrista” como um dos mais belos hinos à liberdade composto em língua portuguesa, além de ser poesia da mais alta voltagem e poderosa interpretação da vida desigual e autoritária brasileira. Mas para quem tem mais de cinquenta e cinco anos e participou da luta pela anistia, ela se tornou uma síntese poderosa, a expressão densa e extraordinária de todas as nossas dores e esperanças. Ainda me lembro do impacto que me causou ouvir atentamente a letra, depois que já a sabia de cor! Eu tinha pouco mais de quinze anos, cantava sem perceber muito como ela começava, todo o resto era lindo demais, e deixava meio de lado o estranho verso: “Caía a tarde feito um viaduto”. Até que alguém, mais velho e experimentado nesses detalhes, me chamou a atenção para tudo que o Aldir Blanc condensara em tão poucas palavras. O cair da tarde, imagem mais do que banal e hiper explorada em tantas canções e poemas, vinha acompanhada de um viaduto. A tarde cai, mas cai como um viaduto. Viadutos caem? Não caem todos os dias, de forma natural, como o sol, que ao se pôr, naquela época, passava a receber os aplausos da juventude dourada de Ipanema. Filho do gigantismo e da concepção autoritária de urbanismo na era militar, o viaduto que caiu foi o elevado da Av. Paulo de Frontin, em 1971, matando dezenas de pessoas, quando entrava em fase de testes, depois de destruir uma das mais belas e arborizadas ruas do Rio de Janeiro. Assim como a ponte Rio-Niterói e a conclusão da Perimetral, foram obras de intervenção na cidade que se viabilizavam pela natureza autoritária e impositiva do governo. A derrocada do viaduto foi muito simbólica, em pleno milagre econômico, era um testemunho monumental da tragédia nacional, de um país submetido a um governo violento, autoritário, concentrador de renda e corrupto. Foi um acidente explícito demais para ser controlado pela imprensa e silenciado pela censura, como fizeram com os operários que atuaram na construção da ponte Rio-Niterói, mortos e concretados junto com os pilares da ponte, e que jamais tiveram seus corpos encontrados. Os números oficiais que os contabilizaram não tinham transparência nem confiabilidade. Essas tragédias estavam ali – “Caía a tarde feito um viaduto, e o bêbado trajando luto me lembrou Carlitos” – e eu só conseguia arregalar os olhos e me encher de admiração pelo trabalho de um grande poeta.
Apenas por essa canção, ele já seria um dos grandes nomes de nossa história cultural.
Mas ele foi muito mais do que isso. O encontro com João Bosco produziu um conjunto de canções que reescreveram a história do país e interpretaram a estrutura profunda de nossa sensibilidade e pensamento. Em tempos de fim de ditadura, de embates com a censura, ele jamais foi um vendedor de ilusões, mas um construtor de realidades potentes e criador imbatível de personagens inesquecíveis, sejam eles Vanderlei e Odilon, Leonor ou Dagmar, que povoam a nossa imaginação e ganham vida própria, como Esmeraldo Simpatia é Quase Amor, do livro de crônicas “Rua dos Artistas e Arredores”, que deu nome a um dos blocos mais populares da cidade. Deboche, malandragem, ironia estão nas crônicas, nas letras, nos poemas onde convivem com a delicadeza das almas de vida noturna, dos amores juvenis, da vida suburbana, atravessada também de melancolia e abandono.  
Aldir Blanc é muito maior do que as circunstâncias que o criaram. Muito mais do que alguém que embalou os melhores sonhos de uma geração, a potência de suas obras atravessará os anos, mas para nós que vivemos cada lance da história recente do país, que construímos do jeito que deu a nossa frágil democracia, ele será o nosso grande parceiro, aquele em quem confiávamos, porque afinal, amigo é pra essas coisas.
Fará muita falta, mas quando a saudade apertar, a gente vai sempre lembrar da esperança equilibrista, e que o show tem que continuar!

ELEONORA ZILLER
Presidente da AdUFRJ
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