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WhatsApp Image 2020 11 20 at 23.11.14No ano em que o livro “Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada” completa 60 anos de publicação, sua autora, Carolina Maria de Jesus (1916-1977), está prestes a ser reconhecida pela primeira vez como Doutora Honoris Causa. O título foi aprovado por unanimidade no Conselho de Coordenação do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH) da UFRJ. A homenagem póstuma foi sugerida pela professora Susana de Casto, diretora do IFCS/UFRJ e co-coordenadora do Grupo de Pesquisa Decoloniais Carolina Maria de Jesus. “É um resgate de uma autora que as novas gerações precisam conhecer. Talvez a importância do título seja dar o reconhecimento que ela merece no campo das artes e letras”, diz Susana. O parecer que concede o título à escritora foi assinado pela Comissão Acadêmica do Conselho, composta pelos conselheiros Maria Muanis, Maria de Fátima Galvão, Jeane Alves da Silva, Miriam Krenzinger e Vantuil Pereira. A indicação ainda precisa ser aprovada no Conselho Universitário.
“É uma sociedade que foi construída no apagamento cultural das contribuições literárias, políticas e culturais dos intelectuais negros e das mulheres de maneira geral. Não só a Carolina, mas muitas autoras intelectuais mulheres que foram silenciadas na história precisam desse resgate. Não um resgate identitário, mas sim pela contribuição literária delas, que é importante para entendermos esse país e passarmos isso para as novas gerações”, salienta Susana.
Mulher, negra e pobre, Carolina Maria de Jesus foi uma autora improvável. Nasceu em 14 de março de 1914 em Sacramento, Minas Gerais, em uma comunidade rural, filha de João Cândido e Dona Cota, ambos analfabetos. Frequentou o Colégio Allan Kardec, de orientação espírita, até o 2º ano do Ensino Fundamental. Em pouco tempo, aprendeu a ler e escrever e desenvolveu o gosto pela leitura. Por sua persistência com os livros, deram-lhe a alcunha de “louca”. Em 1937, após a morte da mãe, ela se mudou para São Paulo. Aos 33 anos, desempregada e grávida, iniciou sua jornada.
“O que percebemos ao ler e estudar a obra dela é um perfil de fronteira, portanto decolonial”, afirma Susana, para quem a história colonial pode ser vista como uma história de derrota ou fracasso dos povos que foram oprimidos e escravizados, mas sim como uma luta de resistência. “Nesse aspecto, Carolina é negra e mulher em um Brasil que ainda estava se refazendo de toda a violência que significou a escravidão. Ela não é oprimida exclusivamente. Ela é uma lutadora. Uma mulher que criou três filhos e que continuou escrevendo”, conta. Carolina nunca aceitou que a colocassem num lugar que ela mesma não quisesse estar. Sua vida de trabalhadora braçal, que vai de babá a empregada doméstica, de cozinheira a operária de fábrica, a faz tornar-se uma peregrina.
Ela morava na favela do Canindé, localizada às margens do Rio Tietê, na Zona Norte da capital paulista, quando começou a trabalhar como catadora de papel. Entre os cadernos, buscava os que estavam em melhores condições para, nas horas vagas, registrar o seu cotidiano. Dificuldades diárias para garantir comida, preconceito racial, problemas com vizinhos e com a educação dos filhos eram alguns dos temas desses cadernos, escritos em linguagem simples. Em 1958, o jornalista Audálio Dantas e Carolina se encontraram no Canindé e os 20 cadernos de anotações viraram seu primeiro e mais famoso livro, o “Quarto de despejo”.
Após a publicação e o sucesso, a autora se mudou para Santana, bairro de classe média da capital. Três anos depois, publicou o romance “Pedaços de Fome” e o livro “Provérbios”. Carolina nunca quis se casar e cuidou só dos filhos João José, nascido em 1948, José Carlos, de 1949, e Vera Eunice, de 1953, cada um de um relacionamento diferente. Morreu em fevereiro de 1977, aos 62 anos, de insuficiência respiratória. Outras seis obras foram publicadas após sua morte, compiladas a partir dos cadernos e materiais deixados pela autora.
Para Mariana Patricio Fernandes, professora adjunta no Departamento de Ciência da Literatura da UFRJ, Carolina tinha na escrita uma maneira de não morrer. “Não só fisicamente, mas não morrer como pessoa, de afirmar o seu lugar e a sua singularidade no mundo. O seu direito de existir passa também pelo direito de escrever”, afirma. Depois da publicação do primeiro livro, Carolina continuou na batalha para ser publicada, mesmo com os editores tentando convencê-la a não publicar mais. “Ela mesmo pagou pela publicação dos outros livros dela, porque era uma necessidade de vida”, diz. Hoje em dia, existe um consenso da força literária da escritora Carolina Maria de Jesus, e também um reconhecimento do que havia de racismo e preconceito no questionamento do valor literário de seus escritos.
Vantuil Pereira, coordenador do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas em Direitos Humanos do NEPP-DH da UFRJ, ressalta que o reconhecimento é uma ação de reparação histórica e, ao mesmo tempo, um olhar para o passado e para o futuro. “Essa reparação tem a ver com um processo histórico de racismo que se construiu ao longo de 400 anos de escravidão e, no caso do Brasil republicano, de um processo combinado de exclusão social, de exclusão da identidade nacional e do branqueamento da sociedade. Esses três pilares constituíram uma divisão onde, por exemplo, um negro não ocupava um lugar de relevo na Literatura”, afirma. Para Vantuil, o título representa um avanço político da pauta racial brasileira no século 21. Carolina, que dizia que o Brasil deveria ser governado por alguém que já passou fome, está perto de um novo atributo: mulher, negra, escritora, favelada e... Doutora Honoris Causa.

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